“Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.” (Fred Zero Quatro, Mundo Livre S/A, 1994 - “Manguebeat: utopia revisitada”)
Uma das repercurssoras do movimento Manguebeat, a banda recifense NAÇÃO ZUMBI lançou seu primeiro cd, entitulado de "Da Lama ao Caos", em abril de 1994. O lançamento deste CD tirou Recife do mapa e o trouxe para o mundo, a fim de provar que nem todo batuque é samba e os caranguejos têm cérebro.
Com batuque grave e enérgico, ouvia-se, abrindo com o verso “modernizar o passado é uma evolução musical”, a voz de Chico Science, o discurso não-vazio do manguebeat. O álbum de estreia de Chico Science e Nação Zumbi modernizava o passado e anunciava o futuro metaforizando a lama do mangue como a revolução que todos esperavam, mas ninguém sabia como fazer acontecer. E hoje, 15 anos após o seu lançamento, a música brasileira se divide em antes e pós manguebeat. “Da Lama Ao Caos” além de ser o primeiro álbum do grupo, fez parte de grito dado nos anos 90, juntando novas tecnologias – visíveis na capa do álbum - com samplers e elementos de percussão, foi distribuindo a cultura nordestina em cada verso aliado a um movimento utópico, com importância grandiosa da divulgação da cultura nordestina para o Brasil. O álbum foi o primeiro de qualquer banda da Cena do Mangue. Antes de qualquer rotulação, escrever sobre todas as bandas desse cenário merece uma leitura rigorosa para entender que o movimento é mais que utópico e musical. De acordo com o atual vocalista Jorge du Peixe, o principal é entender o manguebeat como um movimento tal qual o da Bossa Nova e Tropicália, livre de amarras, cartilhas ou intenções pré estabelecidas.
O movimento do mangue – ou caranguejos com cérebro- , era mais que um som, uma mistura musical ou um ritmo, foi o estopim de uma significativa mudança de comportamento. A juventude passou a valorizar mais a cultura pernambucana e, principalmente, a tomar consciência de que não precisava esperar o Estado ou iniciativas importadas do eixo Sul-Sudeste para fazer acontecer, para criar seus próprios caminhos de expressão cultural. Naquele solo árido do período pré-mangue, onde a juventude tinha poucas oportunidades de cultura e lazer, um sentimento cresceu: “eu posso fazer, eu preciso fazer e Pernambuco tem a matéria prima de que preciso para realizar algo diferente”. Os caranguejos com cérebro começaram a se multiplicar e iniciativas foram se ramificando na música, no design, na moda, no cinema e no vídeo. A movimentação criada pelo manguebeat pipocou e significou novas oportunidades para artistas e técnicos de toda área cultural .
Em comemoração deste marco histórico de seus 15 anos de lançamento, a banda Nação Zumbi foi parar na interiorana Garanhuns, PE, com um show especial mostrando a releitura do “marco zero” de sua história, com convidados que fizeram parte da vida da banda, como Mundo Livre S/A, Ira! e Arnaldo Antunes. Esse show serviu para confirmar o álbum “Da Lama ao Caos” como espinha dorsal do movimento manguebeat, mostrando que mesmo com o tempo passando, a superação da morte prematura de seu ex líder Chico Science(1997) não só foi completamente superada, como também renovado seu conceito estético e se tornado uma das mais importantes e influentes bandas do país. Em entrevista Jorge afirma que, apesar de estar sem Chico, tudo continua fluindo de maneira leve e estético-sonoro como quando construído em conjunto com o ex-líder e que apesar das expectativas e rotulagens sobre todos os lançamentos, tudo é feito muito leve, sem voos altos, com os pés no chão e afirmando cada vez mais a cultura brasileira mundo a fora .
Com o histórico álbum “Da Lama ao Caos” debutando, a gravadora Sony Music colocou nas prateleiras uma edição de luxo, caracterizada como “Meu Primeiro CD”, com dois presentes: um LP original com áudio remasterizado nos E.U.A. e o CD original, e sai pela bagatela de R$150. O preço salgado agrega valor sentimental. Lucio Maia, guitarrista da Nação Zumbi, diz “Ali estão as ideias de anos de expectativa por uma consolidação profissional. Tudo aconteceu da melhor maneira possível. Não imaginávamos que um dia o álbum seria tão importante para a música brasileira. Mudamos o conceito de ‘MPB é uma m..., o negócio é imitar gringo’. ‘Da lama ao caos’ é o primeiro e mais importante disco de nossa carreira.”.
Não há melhor forma de fechar este artigo, sem ser pelas frases do senhor Arthur Dapieve, crítico musical:
“ ‘Da lama ao caos’ foi uma espécie de ovo de Colombo. Muitas bandas de rock das décadas anteriores - sobretudo Mutantes, Paralamas e Titãs, mas até Legião Urbana e Engenheiros do Hawaii - tinham feito tentativas mais ou menos bem sucedidas de eliminar as contradições, ou supostas contradições, entre rock e música popular brasileira. Mas foi o Chico Science quem botou o ovo em pé, com a autoridade proporcionada pelo seu sotaque pernambucano e pela sua profunda imersão nos gêneros regionais, como o maracatu, o forró e o frevo. Tudo fundido com punk rock e soul!
Para mim, isso foi, além de uma delícia de escutar, um alívio de pensar. Porque, como tinha dito a Rita Lee, roqueiro brasileiro sempre tinha tido cara de bandido, significando com isso que soava como uma heresia antipatriótica apreciar o pop-rock anglo-americano por aqui. Ainda hoje, para você ter uma ideia, tem gente que às vezes diz que eu não escrevo "sobre música brasileira". Ah, é? O rock brasileiro dos anos 80 e o Renato Russo não são livros sobre música brasileira?! Mas espero que ninguém seja tão surdo e bitolado a ponto de achar que o que o Nação Zumbi e toda aquela galera de Recife fez não seja música brasileira... Muito brasileira, inclusive, na voracidade antropofágica que digeriu de tudo.”
E para você que me lê, que mudou na sua vida depois de “Da Lama ao Caos”?